05 junho, 2010

O Cartão do Banco não Passou

O Cartão do Banco não Passou.

São Paulo, 31 de maio de 2010.
Era uma aventura épica brilhante.

Virando a página da noite para a madrugada. Carrinho na mão, braço firme pra avançar com velocidade entre gôndolas e prateleiras. Cruzo no corredor com o rapaz limpador do chão da grife de supermercado que sou obrigado a freqüentar por falta de tempo.

A lucidez acometia; vociferava a cada passo a opressão do sistema capitalista que oprime, sufoca, padroniza, desrespeita, paralisa, rouba e mata. Por entre embalagens e nomes famosos. Com a QUADRILHA que manda no preço do leite, gargalhando de Ribeirão até o Paraguai. E o OVO, caro Paulixta, que aqui você paga cinco! No Rio, paga um real e 50.

Cruzo no corredor com o rapaz limpador do chão, moreno, 35 anos, usando um protetor auricular, cabeça baixa, vai... E vem... Atrás dele, o cabo que liga o equipamento à fonte de energia, que também vai... E vem... Sua maquineta mais parece um trenózinho de andar na neve. Embora eu nunca tenha visto um a não ser pela TV.

Mas curioso mesmo, o fato que se deu exatamente na hora em que se vira a página da noite e começa a esbugalhar a madrugada. Pouco depois de perguntar à mocinha do caixa, o que ela ouve mais?

-As pessoas têm mais preconceito para com o Lula ou ao Corinthians?

Primeiro ela sorriu discretamente, como o menino que arruma frutas tinha feito momentos antes ao ouvir meu cantarolar sobre o monopólio de uma das marcas de Ovo.

Pudera, o que este louco está me perguntando? A essa hora! No caixa preferencial!

Pois é moça, a essa hora, e no caixa preferencial, pensei sem que ela percebesse.

Mas aí ela percebeu! Viu que eu devia estar puxando papo. E respondeu:

-Ao Corinthians é claro. E emendou.
-Mas também o Lula é Corinthiano.

Certo. Pensamento lógico perfeito.
Teve um finalzinho este diálogo, mas não foi tão interessante assim.

Pulei partes, não falei da falta de preço à vista que enlouquece os ceguetas e os que enxergam mal, e os que enxergam mais ou menos como eu. Insuportável procura pelo preço!

Cruzo no corredor com o rapaz limpador do chão. Ele me pede desculpas ao quase me atropelar no seu vai vem triste. Porque o super hiper extra bosta mercado não fecha nunca, e também paga mal seus escravos infelizes, de perspectivas inexistentes.
E como o seu público fiel gosta de ser enganado, roubado e ser tratado com descaso e desrespeito, também o trata desta forma.

Quando o carrinho de compras enrosca no cabo do trenozinho do amigo rapaz limpador do chão, o colega boêmio do passeio mercantil, revolta-se contra o rapaz limpador do chão.
Deixo de colocar o Toddy da Ana Lua no carrinho pra em tom médio alertá-lo:

- A responsabilidade deste transtorno com seu carrinho, não é do nosso amigo ali! É do péssimo serviço prestado por esta empresa.

Debaixo do seu chapéu velho, de protetores auriculares, não sabe o que se passa na cabeça de ninguém à não ser na sua! “Esse viado não sai do meio do caminho”, era isso que o rapaz limpador do chão, devia estar pensando! E claro o viado era eu. E com toda razão!
Talvez não saiba bem o que se passa nem na sua. Sabe apenas que não pode comprar um carrinho cheio de coisas como os clientes com que tromba nas alamedas do CASINÔ.

Rica fauna se pode observar nestes corredores. Não só em horários estapafúrdios como a madruga, dá próxima vez vou abrir uma breja, porque como diz sei lá quem, só bebendo.

Mas vejam, cumpro a penitência por minha falta de ousadia, madrugando cedo, saindo noturnamente no escuro, beijando as que mais amo sem que elas saibam, cobrindo-as, por vezes metendo a mão na fralda de merda. Aciono minha máquina possante, deslizo, com destreza e rapidez, condução impecável, cada metrinho de Av dos Bandeirantes e 23 de Maio, entre caminhões obsoletos, arcaicos, símbolo do atraso que minha pátria finge não enxergar e assim enfio meu indicador em um leitor biométrico de freqüência.
Os tubos de esgoto que avançam sobre minha cabeça diariamente na minha sala sem janelas são o retrato do horror. Mas tem sensor biométrico de presença. Deve ter sido idéia do projeto que a egrégia casa encomendou da GV. Que pena que a GV não enfiou no projetelho um itemzinho(com M, mesmo), do tipo, pagar integralmente o auxílio creche para seus funcionários!

Lá venho eu querendo discutir filosofia!

E quando já está bem de noitinha, já quando rapaz limpador do chão já está fazendo o dele, imperceptível, a não ser pelo rabo-cabo que carrega! E eu terminando o meu, carregando o meu rabo, e sei mais o que, chego em casa. Carregar é preciso! Viver? É impreciso!

Chego em casa, não sem antes, perguntar à moça do caixa:

-Você sabe porque existe a Copa do Mundo?
-Pra gente sair mais cedo do trabalho! Essa ela respondeu de prima! De bate pronto como diz quem joga bem bola. E eu jogo bem bola.
-Essa é a única parte boa! Mas sabe das ruins a pior?
-Pra vender cerveja e cachaça pro povo!
Afinal, lazer é sinônimo de encher a cara aqui na patolândia. É assim que se constroem os beberrões do futuro.

Vender também, aparelho de barba, plano de viagem, cartão de crédito, bolas, meias, figurinhas, revistas, TVs indecentemente caras, pipoca, tubaína, maconha, ilusões, lingüiça, automóveis, mas isso eu não falei não.

Porque eu estava de saída, um pouco chateado é verdade, meio com rabo entre as pernas, sem dinheiro, pois lucidez não engrossa caldo, e meu cartão não tinha passado. Eu e minha dignidade, de nada valemos para o dono do castelo. (O que, aliás, eu acho ótimo, pois não me misturo nem matem.).

Deixo as dependências do palacete moderno tupiniquim, com o leitinho das crianças ficando para trás. E também o feijão, um vidro de óleo, uma caixa de ovos, garimpada de três e 50, papel higiênico, sabão, o ferro de passar roupas, clássico, liso e chapado, e um azeite espanhol na promoção que estava nove.

Pois vejam, deixo quase tudo por lá, Os tabletes de manteiga, o Toddy da Ana Lua, o requeijão. Haja luxo.

Carrego somente o tíquete de controle do estacionamento que deixo em um saco de lixo junto à cancela. (Automática é claro, afinal para que empregar mais um escravo?).

Dirigindo e digerindo cada sensação do passeio, volto pra casa. Será que estourou todo o limite a qual faço jus na casa bancária? Será apenas mais uma pane comum no sistema de comunicação? Isso seria melhor ou então estou falido?

Penso nos meus professores, nos meus amigos, nas minhas meninas, todas. E penso no rapaz limpador do chão do supermercado, porque daqui a pouco, afinal, é hora de acordar.





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